terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Prevenindo enchentes


O desafio da prevenção de catástrofes na era do aquecimento global e da reformulação da relação entre a urbanização e os corpos d'água é um grande desafio

Alfredo Sirkis

Jacarepaguá: enchente de 1996

 
O aquecimento global atinge o Brasil de três maneiras principais: savanização da Amazônia, desertificação do semi-árido e multiplicação de enchentes no centro sul. Nossos rios, valas e canais foram assoreados, aterrados e desviados abusivamente. Muitos também foram canalizados. Suas margens foram ocupadas, as matas ciliares e áreas de acumulação suprimidas. Imensas quantidades de lixo acumulam-se no seu interior e nas encostas, desmatadas, sujeitas à erosão. Enormes extensões de solo foram totalmente pavimentadas e impermeabilizadas sem deixar suficientes pontos de contato da água da chuva com o solo. Regiões no passado alagadiças, com pântanos, mangues, brejos ou várzeas, foram, primeiro, aterradas e, depois, impermeabilizadas e edificadas. O lixo que muita gente insiste em vazar nas ruas entope os ralos e as galerias pluviais.

A gestão das águas e a do lixo estão totalmente desassociadas. Uma depende freqüentemente da esfera estadual e a outra dos municípios. Dentro da própria gestão das águas o abastecimento e esgotamento estão separados da drenagem e da conservação dos corpos hídricos. A questão do lixo agrega-se à dos esgotos e qualquer estratégia visando à sustentabilidade precisa levar em conta ambos fluxos poluentes. Nas inundações e desabamentos o problema dos resíduos sólidos torna-se particularmente dramático.

A vulnerabilidade climática e topográfica é exacerbada pela impermeabilização de imensas superfícies urbanizadas com escassos pontos de absorção de águas na enorme manta de concreto e asfalto. A retificação e a canalização de rios e canais aceleram a velocidade das águas, que, retiradas mais rapidamente de um ponto, vão se represar em outro, mais adiante, com maior intensidade. O entupimento desses condutos por grandes quantidades de resíduos sólidos, sobretudo plásticos, costuma ser a gota d'água das tragédias. 

Durante as chuvas de verão, a natureza se vinga, implacavelmente. As encostas desmatadas desmoronam sobre as construções em áreas de risco. O solo totalmente impermeabilizado pelo asfalto e pelo concreto não absorve a água que corre sobre as ruas asfaltadas a grande velocidade, arrastando casas, automóveis e pessoas. A drenagem feita exclusivamente para transportar rapidamente as águas para mais adiante agrava a situação com o passar do tempo.

Durante muitos anos, a dragagem foi associada simplesmente à correção e ao aprofundamento da calha de canais e rios combinada à pavimentação das suas margens e outras providências. Tudo para dar maior velocidade ao movimento das águas, sem prever os gargalos que elas fatalmente encontram adiante. Com isso, apenas se transfere o local da inundação, agravando-a, pois a drenagem convencional não elimina nem absorve as águas, apenas as desloca.

Para enfrentar enchentes e inundações é preciso recuperar as margens dos rios; criar bacias de acumulação nos pontos críticos recompor a sua profundidade original através de dragagens criteriosas; reflorestar as matas ciliares, os mangues e as várzeas; reassentar as comunidades de áreas de risco; fazer uma drenagem inteligente, com uma visão de conjunto da região; multiplicar nas cidades o maior número possível de áreas verdes destinadas a acumular precipitação; construir reservatórios nos telhados para absorver parte da água e aproveitá-la para a jardinagem, limpeza de partes comuns e lavagem de carros. Áreas de acumulação podem ser criadas em praças, estacionamentos,parques e quase sempre ter algum tipo de uso recreativo ou de paisagismo nos dias normais. A impermeabilização do solo deve ser reduzida ao mínimo necessário. Calçadas com muitos canteiros, praças parcialmente pavimentadas, estacionamentos de terra batida ou com uma teia de concreto tipo grade que permita o contato da água com o solo são algumas providências necessárias.


No passado, em quase todo o mundo, parques famosos foram criados primordialmente como áreas de acumulação e absorção de inundações, mas acabaram tendo também um uso recreativo. Cada novo edifício, área de estacionamento ou parque dentro da cidade devem ser desenhado para prevenir ou mitigar inundações e conservar e restaurar recursos hídricos. No já mencionado livro de Anne Whinston Spirn, The Granite Garden, sugere-se que cada projeto deva: lidar com a relação entre a área do projeto e os problemas críticos da cidade no tocante a inundação, poluição hídrica e abastecimento de água potável, ao mesmo tempo que se relacionar com os problemas e recursos específicos existentes na área e na sua vizinhança imediata; localizar e desenhar construções e paisagismo, de forma a evitar danos provocados por inundações; explorar as possibilidades de uso dos telhados, praças, áreas de estacionamento e trechos de terra para deter e reter águas pluviais; criar parques em áreas de várzea para acumular águas pluviais e resistir a danos provocados pela inundação; conceber as dimensões, a profundidade, a forma e as margens de corpos hídricos urbanos, de forma a melhorar a circulação e a acumulação de águas pluviais; selecionar cuidadosamente plantas que requeiram pouco, senão nenhum, uso de irrigação, fertilizantes e pesticidas; reutilizar águas pluviais, caso não estejam contaminadas, para irrigação; explorar as propriedades estéticas das águas, sem desperdiçá-las.



Dito isso, é preciso reconhecer que em muitas situações a dragagem é fundamental. Corpos de água assoreados em relação a sua calha histórica, com o fundo cheio de lodo orgânico e detritos, e que vão se convertendo em charcos ou pântanos, devem ser dragados. O importante é que sejam tomados cuidados elementares com a área de bota-fora, para secagem e posterior remoção do lodo. A dragagem deve obedecer a um planejamento tecnicamente consistente e ambientalmente avaliado. Existem possibilidades de parcerias com a iniciativa privada, pois há empresas de construção dispostas a realizar essas dragagens, já que necessitam de areia para construção. Ocorre, no entanto, que essas parcerias podem dar lugar a graves distorções. Para que elas sejam válidas é necessário que os interessados se disponham a seguir rigorosamente um projeto previamente traçado, que retirem não apenas o que lhes interessa, a areia, como também o lodo, que é o que interessa ao público.

A ocupação irregular das margens dos rios, canais e lagoas não só expõe os moradores aos riscos dos efeitos diretos e indiretos das enchentes como inviabiliza o trabalho de dragagem. Em áreas carentes, às margens de canais, rios e lagoas, uma tarefa fundamental, para a qual o poder local pode e deve buscar financiamento, é a liberação das faixas marginais de proteção, reassentando os ocupantes em área próxima, para possibilitar a criação de áreas de segurança, acumulação, e permitir o acesso de maquinário utilizado na dragagem.

Uma ação que começa a ser implmentada em certas cidades é a recomposição de rios previamente canalizados.

Um estudo de caso muito interessante que visitei foi o de Cheonggyecheon, no centro de Seul. Esse rio, um afluente do Hangang, que desagua no Mar Amarelo, foi canalizado no pós-guerra e sobre ele foi construído um viaduto, no final dos anos 60. Em 2003, o então prefeito de Seul e atual presidente da Coreia do Sul, Lee Minung-bak decidiu demolir o elevado, quebrar o concreto e desentranhar o rio recompondo suas margens transformadas num parque linear de quase 6 km. A intervenção custou U$ 900 milhões e, naturalmente, provocou violentas polêmicas. O resultado, no entanto, parece interessante e proporciona à população da capital coreana uma área de lazer e amenidade numa área da cidade que antes era bastante inóspita, além de contribuir para a prevenção de inundações. Se a moda pega...


Favela devastada por inundação

Erosão na encosta
















Via marginal em SP: uma urbanização feita para inundar

Cheonggyecheon: era assim


















Foi sendo desmontado...

...e ficou assim!

Nenhum comentário:

Postar um comentário